17 de janeiro de 2011

acomodar os fantasmas

   Ouvia o pingar da torneira da cozinha e as folhas que farfalhavam próximas da janela; não se deu ao trabalho de fechar nem uma, nem outra. Alguém abriu a geladeira. Não viu, nem tentou ver, quem foi. Levantou-se, buscou as chaves sobre a mesa do telefone, escancarou e bateu com força a porta e rumou para o carro.
   Não acendeu a lâmpada, escolheu a trilha sonora no escuro; esperou. Finalmente apareceram.
   "Você, lá atrás", disse ao seu alcoolismo, que não era dos maiores problemas. "Vocês", disse às ilicitudes e vicissitudes, "junto com ele". E seguiu assim, organizando todos por ordem de tamanho — os menores, mais inofensivos, como insubordinações e respostas cretinas, sempre acabavam no porta-malas para que não se perdesse tempo com eles. Escolhia com mais cuidado os lugares dos mais robustos e ariscos.
   Deu a partida no carro, acendeu seu cigarro, aumentou o volume do rádio e olhou para o último: "Você, que é mais perigoso", disse ao fantasma de seu próprio Eu, "aqui na frente, onde posso vê-lo". Espectros todos acomodados, cada um em seu devido lugar — o que não durava. Respirou fundo, preparando-se para mais uma rodada, e partiu.


"É bom dirigir à noite. Mas você sabe, às vezes é preciso estar só.
Acomodar os fantasmas"
j.e.


R.

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